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Mostrando postagens de 2011

A UM PESSIMISTA

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Olhas o céu e o céu, todo em atra gangrena, Se te mostra corroendo as rútilas esferas. Baixas à terra o olhar e a terra, em outras eras, Plena de gozo e amor, ora é de horrores plena. Sangra a etérea região, sangra a região terrena E o horizonte, que as une, inda mais dilacera-as. E as próprias linhas — louco! em que a sânie verberas, Podres vêm ao papel, podres brotam-te à pena. Mas, se ao céu e se à terra, e se ao horizonte e ao verso, Asco e náusea tressuando, a podridão atrelas E nela vês tombar e fundir-se o universo, Sobe do chão o olhar, baixa-o das nuvens belas E volve-o dentro em ti, pois fora o tens imerso Na própria irradiação das tuas próprias mazelas [Emílio de Meneses]

CAMPO SANTO

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Eis-me afinal de novo entre os meus bons convivas, Só com meus sonhos,só,com a minha saudade, E as mortas ilusões e ilusões redivivas De que o morto passado a alma toda me invade. Porque se me hão de impor,fortes e decisivas, As descrenças dos que,sem fé,sem caridade, Sem esperança,vêm dessas alternativas De mal fingido amor e fingida piedade? Sinto-me preso aqui.Entre angústias me envolvo, -Esfinge que se envolve entre os arcais da Líbia - Mas o fatal problema entre audácias resolvo Alma!que importa a dor que te devora?Exibe-a Ante a morte que em seus tentáculos de polvo Mói crânio contra crânio e tíbia contra tíbia! Emilio de Meneses

MESMICE

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Quisera eu pôr nestes quatorze versos Um leve, fino, alegre comentário A algum novo e notável caso diário, Entre os casos urbanos mais diversos. Percorro dos jornais o noticiário, Leio artigos e tópicos dispersos, A pedidos satânicos, perversos, Desastres, crimes, contos-do-vigário. Nada encontro que inspire à alegre musa Uma nota satírica e atrevida Que nos nervos um frêmito produza. É sempre a mesma coisa repetida: Luza o sol, venha a noite, o sol reluza, Como o banal, se reproduz a vida! Emilio de Meneses

O RIO GUERREIRO

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Rota a vertente, a rocha rebentando, Impetuoso em esguicho o campo irrora; Regato agora, agora largo e brando, De branca espuma a superfície enflora. Logo torrente o crespo dorsa impando, - Quer seja noite, quer o veja a aurora – Légua a légua o terreno conquistando, Vai caudaloso pelo vale em fora. Ei-lo afinal - o forte curso findo, Num esforço estupendo, soberano. Fero, revolto, arroja-se rugindo Aos loucos roncos vagalhões do Oceano. A Pororoca o estrondo repetindo Eternamente do combate insano!... Emílio de Meneses

A CHEGADA

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Noite de chuva tétrica e pressaga. Da natureza ao íntimo recesso Gritos de augúrio vão, praga por praga, Cortando a treva e o matagal espesso. Montes e vales, que a torrente alaga, Venço e à alimáría o incerto passo apresso. Da última estrela à réstia ínfima e vaga Ínvios caminhos, trêmulo, atravesso. Tudo me envolve em tenebroso cerco D'alma a vida me foge, sonho a sonho, E a esperança de vê-la quase perco. Mas uma volta, súbito, da estrada Surge, em auréola. o seu perfil risonho, Ao clarão da varanda iluminada Emílio de Meneses

VIDA NOVA

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De uma vida sem fé de nebuloso inverno, Furtei-me sacudindo o gelo da descrença. Aquece-me outra vez este calor interno, Esta imensa alegria, esta ventura imensa. Sinto voltar de novo a minha antiga crença, Creio outra vez no céu, creio outra vez no inferno, Na vida que triunfe ou na morte que a vença Creio no eterno bem, creio no mal eterno! E quando enfim do corpo a alma for desgarrada E procure entrever a região constelada Que aos bons é concedida, esplêndida a irradiar, Ao coro festival de um hino triunfante Abra-se a recebê-la, olímpico e radiante Todo o infinito céu do teu sereno olhar!... Emílio de Meneses

MATINA

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Noite! Cesse o teu ar imoto e quedo! Quero manhã! todos os sons que vazas! Fujam do ninho ao lépido segredo Todas as bulhas de reflantes asas. Sol! tu que a terra fecundando a abrasas. Desce da aurora em raio doce e a medo, Todas as luzes travessando o enredo Diáfano e leve das nevoentas gazas. Telas festivas deslumbrai-me a vista! Cantos alegres desferi-me em roda Em toda a luz, em todo o som que exista. E a natureza toda em harmonia, Iluminada a natureza toda, Surja gloriosa no raiar do dia. Emílio de Meneses

GOTA D’ÁGUA

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Olha a paisagem que enlevado estudo!... Olha este céu no centro! olha esta mata E este horizonte ao lado! olha este rudo Aspecto da montanha e da cascata!... E o teu perfil aqui sereno e mudo! Todo este quadro que a alma me arrebata, Todo o infinito que nos cerca, tudo! D'água esta gota ao mínimo retrata!... Chega-te mais! Deixa lá fora o mundo! Vê o firmamento sobre nós baixando; Vê de que luz suavíssima me inundo!... Vai teus braços, aos meus, entrelaçando, Beija-me assim! vê deste azul no fundo, Os nossos olhos mudos nos olhando!... Emílio de Meneses

Perderás de mim

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VII Perderás de mim Todas as horas Porque só me tomarás A uma determinada hora. E talvez venhas Num instante de vazio E insipidez. Imagina-te o que perderás Eu que vivi no vermelho Porque poeta, e caminhei A chama dos caminhos Atravessei o sol Toquei o muro de dentro Dos amigos A boca nos sentimentos E fui tomada, ferida De malassombros, de gozo Morte, imagina-te. Hilda Hilst Da Morte. Odes Mínimas (1979)

Pertencente te carrego...

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III Pertencente te carrego: Dorso mutante, morte. Há milênios te sei E nunca te conheço. Nós, consortes do tempo Amada morte Beijo-te o flanco Os dentes Caminho candente a tua sorte A minha. Te cavalgo. Tento. Hilda Hilst Da Morte. Odes Mínimas (1979)

Demora-te sobre...

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II Demora-te sobre a minha hora. Antes de me tomar, demora. Que tu me percorras cuidadosa, etérea Que eu te conheça lícita, terrena Duas fortes mulheres Na sua dura hora. Que me tomes sem pena Mas voluptuosa, eterna Como as fêmeas da Terra. E a ti, te conhecendo Que eu me faça carne E posse Como fazem os homens. Hilda Hilst Da Morte. Odes Mínimas (1979)

Nuns atalhos da tarde...

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LXVI Nuns atalhos da tarde Vivendo imensidão Minha alma disse a mim Rica de sombras: Não pertencida. Exilada dos sóis Das outras vidas. Hilda Hilst Cantares de perda e predileção (1983)

Tens a medida...

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LXIII Tens a medida do imenso? Contas o infinito? E quantas gotas de sangue Pretendes Desta amorosa ferida De tão dilatada fome. Tens a medida do sonho? Tens o número do Tempo? Como hei de saber do extenso De um ódio-amor que percorre Furioso Passadas dentro do vento? Sabes ainda meu nome? Fome. De mim na tua vida. Hilda Hilst Cantares de perda e predileção (1983)

Cadenciadas...

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LIII Cadenciadas Vão morrendo as palavras Na minha boca. Um sudário de asas Há de ser agasalho E pátria para o corpo. Anônimo, calado O poeta contempla Espelho e mágoa Fragmentos de um veio Berçário de palavras. Umas lendas volteiam O poeta vazio de seus meios: Escombros, escadas Amou de amor escuro A fugiu de si mesmo De sua própria cilada. O poeta. Mudo. Aceitável agora para o mundo No seu sudário de asas. Hilda Hilst Cantares de perda e predileção (1983)

Teus passos somem...

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XIX Teus passos somem Onde começam as armadilhas. Curvo-me sobre a treva que me espia. Ninguém ali. Nem humanos, nem feras. De escuro e terra tua moradia? Pegadas finas Feitas a fogo e espinho. teu passo queima se me aproximo. Então me deito sobre as roseiras. Hei de saber o amor à tua maneira. Me queimo em sonhos, tocando estrelas. Hilda Hilst In Poemas Malditos Gozosos E Devotos (1984)

Que este amor não me,,,

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I Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua do estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida. Hilda Hilst In Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995)

NAU ERRANTE

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Ilusão – nau singrando em ânsia, em sobressalto, O Atlântico da Vida, em constantes boléus... Ondas batem-lhe à popa e ondas tecem, no assalto, Níveas teias de espuma, alvas tramas de véus... Hinos de luz à Fé vagam no ar de cobalto, Os faróis da Esperança olham nos mastaréus, E os mastros subindo alto, ainda mais alto, alto, Como para acender as estrelas nos céus... Vento Sul da Incerteza... Ondas bravas... A Escuna Oscilando... oscilando... E a vela que se enfuna, Branco lenço, no espaço, aos longes a acenar... Ilusão – nau que frui a volúpia das vagas, Que destino, Ilusão, te irá quebrar nas fragas Ocultas na amplidão desse trevoso mar?... Da Costa e Silva

A VIGÍLIA DO SILÊNCIO

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Apraz-me ouvir, às horas vespertinas, Quando o ocaso desmaia o azul sidéreo, O longo cantochão das casuarinas Na religiosa paz do cemitério. As árvores, em múrmuras surdinas, De um rumor elegíaco e funéreo, Falam de coisas mortas e divinas, Veladas pelas sombras do mistério. A perscrutar as vozes do arvoredo, Na ânsia inquietante e céptica do sábio, Tento, ó Morte! saber o teu segredo. Mas vejo, no alvo mármore das urnas, O Silêncio com o dedo sobre o lábio, Olhando as vagas solidões noturnas... Da Costa e Silva

À SOMBRA DO SALGUEIRO...

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Porque fosses o sonho de ventura Que eu tanto ambicionara e conseguira, Nunca julgara, nem jamais previra O transe cruel que agora me tortura. Só a extensão de um grande mal sem cura Poderia mostrar que me iludira; Que a ventura na vida é uma mentira Sempre falaz àquele que a procura. Louco de dor, o espírito delira E a Castália das lágrimas apura A emoção de infortúnio que me inspira... Mas foi tamanha a minha desventura, Que pendurei, muda e quebrada, a lira No salgueiro da tua sepultura. Da Costa e Silva

A LÂMPADA DE PRANTO

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Tíbia a lâmpada apagava-se E, antes que o óleo se extinguisse, Tentei, desolado e triste, Alimentá-la com lágrimas. E ei-la com o bojo ainda úmido De pranto amargo e silente, A alumiar para sempre A solidão do teu túmulo. Nem o vento frio e ríspido A chama oscilante apaga, Porque esta luz é a saudade, E a lâmpada o meu espírito. Da Costa e Silva

À LUZ DO POENTE...

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Há dias que se esquecem de repente Nesta vida de lutas e cuidados; E outros que passam, porém são gravados Na retina e no espírito da gente. De entre os meus dias tristes já passados, Há um que a todo tempo está presente, Pois não me sai dos olhos, nem da mente, Desde o instante em que fomos separados. Se pudesse ser sonho o que se sente, Julgara pensamentos desvairados O que revejo subjetivamente: Vultos negros, solenes, desolados, Levando, lentamente, à luz do poente, Um caixão roxo de florões dourados. Da Costa e Silva

A GRANDE DÚVIDA

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Porque hei sofrido tantos golpes rudes, Às vezes penso que outra vida existe, Para ficar mais cético e mais triste Com o meu destino de vicissitudes. Nem sofrendo, às celestes amplitudes Hei de ascender à altura que atingiste, Por não poder, na prova que me assiste, Aos meus erros opor tuas virtudes. Assim temo, a evocar-te a imagem linda, Que após a morte, venha a eternidade Esta separação tornar infinda... E, então, o sentimento que me invade, Sem a esperança de te ver ainda, É dor eterna, não é mais saudade. Da Costa e Silva

O ETERNO MISTÉRIO

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Desde a a tarde violácea em que partiste Para tão longe, para não sei onde, Eu vivo a interrogar, calado e triste, A natureza que me não responde. Falo à estrela no espaço, à flor na fronde, A perguntar em vão se o céu existe; E tudo que a luz mostra e a treva esconde À voz da minha súplica resiste. Se há um mundo divino, além do humano, Indago; e o vento, as águas, o arvoredo, Têm o mesmo mistério soberano... A vida não revela esse segredo, Que a morte oculta num sombrio arcano, Que enche os homens de dúvida e de medo. Da Costa e Silva

NA TARDE AZUL E TRISTE...

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O meu jardim amanhecera Constelado de brancas margaridas, Que orvalhadas, ao sol, eram estrelas Desencantadas e pensativas... Depois, na tarde azul e triste, A terra abriu-se para receber-te! Adormeceste para sempre, Baixando à terra com as margaridas... E à noite o céu era um jardim do Oriente Florindo em luzes pela tua vinda! Anoitecia no meu pensamento... Da Costa e Silva

SÍNTESE

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Tornei-me espelho do mundo, Desde que o meu pensamento Ficou límpido e profundo Como o azul do firmamento. Da Costa e Silva

ADEUS À VIDA

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É, então, isso a vida: a nau perdida, Sem bússola e sem leme, aos temporais? A flórea escarpa, de íngreme subida, Da montanha dos risos e dos ais? É, então, isso a vida: a flor colhida Sobre abismos ocultos e fatais? A quimera da Terra Prometida, No êxodo eterno para o Nunca-Mais? É, então, isso a vida: o sonho obscuro Dos Ícaros, Jasões e Prometeus, Perdido na celagem do futuro? É, então, isso a vida? — Vida, adeus! Não é esse o caminho que procuro... Mas seja tudo pelo amor de Deus. Da Costa e Silva

O SINAL DA CRUZ

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Se é preciso lutar para ser forte, Se é preciso sofrer para ser puro, Em luta e sofrimento a vida apuro, Para tranquilo merecer a morte. Hei lutado e sofrido de tal sorte Que, a tantas provações, meu ser impuro Sonha atingir a perfeição que auguro Em resignado e místico transporte. A existência de lutas e de penas, Como um cardo florindo entre os abrolhos, Vou bendizendo pelo bem que faço. E quando a morte vier, resta-me apenas Juntar as mãos e levantar os olhos Para o que exista em luz além do espaço. Da Costa e Silva

A ÚLTIMA ILUSÃO

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Sobre o mar de safira, o céu de opala. Uma vela perdida no horizonte, E o azul que foge cada vez mais longe... Ilusão de minh’alma! Da Costa e Silva

O ÚNICO BEM

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Lutei, sonhei, sofri, desde criança, Nesta inquietude, nesta vã tortura De quem jamais consegue o que procura E, se consegue, perde quanto alcança. Já nem me resta ao menos a esperança, Para a ilusão da glória e da ventura; Nem a fé, ante a dúvida, perdura, Desde que o amor, num túmulo descansa. Tanto alcancei, quanto perdi, de sorte Que, em suprema renúncia, a alma vencida Não devera aspirar senão à morte. Mas, como a sorte me foi tão funesta, Aprendi muito mais a amar a vida, Porque é o único bem que ainda me resta. Da Costa e Silva

SOMBRA E NÉVOA

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Cai o crepúsculo. Chove. Sobe a névoa... A sombra desce... Como a tarde me entristece! Como a chuva me comove! Cai a tarde, muda e calma... Cai a chuva, fina e fria... Anda no ar a nostalgia, Que é névoa e sombra em minh’alma. Há não sei que afinidade Entre mim e a natureza: Cai a tarde... Que tristeza! Cai a chuva... Que saudade! Da Costa e Silva

ENTRE CÉU E ABISMO

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A minha vida é um abismo De dúvida e pessimismo, Quando ouço o meu coração. Mas se ouço o meu pensamento, É também um firmamento De fé e resignação. Por isso, entre o céu e o abismo, Com as nuvens do Cepticismo, Meus dias correndo vão... Da Costa e Silva

NÃO DESEJES, NEM SONHES...

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Não desejes, nem sonhes, alma incauta, Que a ilusão tem o encanto da sereia, Que em noites aromais de lua cheia Seduz e perde, em alto-mar, o nauta. Feliz daquele que os seus atos pauta Dentro dos dons da vida que o rodeia, E acha o leito macio e a mesa lauta Na indiferença da fortuna alheia. Feliz de quem, da vida para a morte, Embora pobre, de pobreza triste, Se contenta, afinal, com a própria sorte. Se há ventura no mundo, essa consiste, Talvez, em suportar, de ânimo forte, A renúncia de um bem que não existe. Da Costa e Silva

SUBIA A LUA, LEVE...

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Um luar fluido e veludoso como um bálsamo Ungia a noite voluptuosa e ardente. A sua luz era tão branca que tornava o céu diáfano... Subia a lua leve como o pensamento. Eu dialogava com o silêncio... Uma toada rústica De flautas e violões transportou-me à saudade. E, abstrato de mim mesmo, eu te bendisse, ó música, Que da tristeza de pensar me libertavas! Da Costa e Silva

AS HORAS

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As Horas cismam no ar parado: — Passado. As Horas bailam no ar fremente: — Presente. As Horas sonham no ar obscuro: — Futuro. Da Costa e Silva

A MAGNÓLIA

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Sem paixão plantei-a no meio do jardim. Pesado tributo à insolvência dos dias. Bandeiras de cor verde-ferrugem transeunte natureza de amor desvelam caravela de pássaros e o vento nas ramas alegre o riso na onda: o arco-íris. (Comprei vestidos sem cor e – pelo verão – esperei as vergônteas da morte. A água que bebi era de cinza.) Nuvens se espedaçam inflam botões alvos sorrisos na relva e o chá vertido nas flores bebemos da lembrança. (Se nasceram luas apenas e pétalas decepadas acaso fui eu acaso fui eu?) Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

JARDIM NOTURNO

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Os mortos chegam pisando com pés de flores tocam violetas temem o brilho das rosas luas de nácar desfazem na grama lúnulas maculas de pólen e as mínimas flores da deslembrança. O silencio agita sombras. O que buscais amados mortos pisando com pés de flores: o odor de dias idos nas magnólias? Raízes de que saudade? Ah delírio de girassol da noite! Só o vento desliza. Os amores-perfeitos (eles buscam) e outros de azulada memória. Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

O SILÊNCIO

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O silêncio tem uma porta que se abre para um silencio maior: antecâmara do ultimo, que anuncia outro depois. Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

CHUVA

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CHUVA Estendida a mão obrigou-te a chuva a ser quem és: a do relento, em vésperas, pássaro de beira o pulo no ar realçando o instante. A chuva te abrigou, em concha a palma cheia de estrias, marcando a terra a que pertences. Sua fome devorou-te o excesso e batizou-te: única. Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

NOTURNO

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Nossos olhos nos pertencem — não o dia. Amor não nos pertence nem a morte. Apenas pousam na pérola mais fina. Desce o luar No flanco de rios precipitados folhas se alongam caules estremecem. A noite já desfere seu punhal de trevas. Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

À JANELA DA NOITE

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A lua em seu círculo. Piam pássaros da sombra. Meu coração destas raízes, hera escura na solidão de um muro. Cintila a constelação de Andrômeda em sua haste de lágrimas. Nos grãos do vento partiram pombos em tumulto e brancura. Nem a glória nem o lamento: vento e planura. Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

FANTÁSTICA

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De teia tão fina teci teu rosto no tear dos dias na sala vazia das noites extenuadas em triste vigília pai urdi tua fonte tuas mãos tua melancolia nascida igual na minha boca pai filho imaginário do meu pensamento se te amo tanto entre fronteiras cegas é para compor contigo o vago poema que deixaste incompleto Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

FLORES

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As flores do inverno vão se abrindo em arbustos sem folhas candelabros de ramos que se aquecem na débil luz que emana das corolas. Falam em surdina, veladas de aroma, as pétalas, bailarinas do pudor, confidenciando nos vórtices secretos dentro da pálpebra do dia sem calor. Dora Ferreira da Silva Poesia Reunida (1999)

DESPEDIDA

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Dizer adeus ao mistério daquela porta cerrada à luz fosca desse dia abandonado. Que severa parecias, longínqua e inviolada flor deste inverno findando. Recolhi-me entre os crisântemos que te vestiam tristonhos: tanto abandono querida uma parede tão dura impermeável ao pranto à ternura levados para te dar. Ao meu sim de desalento nenhuma resposta ou lamento, nada. Teu segredo, só ele persistia. Fiquei noturna, olhando teu esquivo dia. Dora Ferreira da Silva Cartografia do Imaginário, T.A. Queiroz, Editor, 1999

O FOGO

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O fogo acende-se no próprio nome sete línguas ardem no coração da rosa e se alastram pelo jardim voltando depois ao próprio nome. Se ao fogo perguntas: “É ele? És tu?” crepitam centelhas. Um Serafim o abraça e ao coração. Dora Ferreira da Silva

MURMÚRIOS

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Pousa num ramo um sopro de agonia dos que morrem (sem saber) em nosso coração. Suspira a noite no vento vadio. Amados mortos: tentais dizer o quanto amais ainda? Dora Ferreira da Silva

NASCIMENTO DO POEMA

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NASCIMENTO DO POEMA É preciso que venha de longe do vento mais antigo ou da morte é preciso que venha impreciso inesperado como a rosa ou como o riso o poema inecessário. É preciso que ferido de amor entre pombos ou nas mansas colinas que o ódio afaga ele venha sob o látego da insônia morto e preservado. E então desperta para o rito da forma lúcida tranqüila: senhor do duplo reino coroado de sóis e luas. Dora Ferreira da Silva De Andanças (1948)

Vivos e mortos...

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(...) Vivos e mortos perambulam nas estradas um sorriso nos lábios. O que dizem no silêncio agora pleno da alma? Appassionata. O gesto preserva a emoção e o brusco perpassar de folhas mortas. Gemem pássaros noturnos fiéis da madrugada até que o horizonte desperte em sua luz dourada. Dedos da memória afagam e são cruéis: tudo ressurge e se transfigura no que poderia ser se a chuva desabasse. Só os relâmpagos ao longe de raios mudos. (...) De Appassionata São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007 (obra póstuma)

FRONTEIRAS

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Os cedros, a lua, os túmulos geraram este silêncio, ou do silêncio nasceram cedros, túmulos e lua? Indiscerníveis limites: não podemos saber nunca se triste é este pobre mundo, se nós é que somos tristes. Tasso da Silveira Poemas Tristes – l.966 –

ÚLTIMO SONETO

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Ainda hoje a Vida, a carcereira, deu-me, por entre as grades da prisão, a minha bilha de água verdadeira e o meu pedaço humílimo de pão. A fome fez da minha boca mendigueira uma cítara, e a sede deu-lhe a afinação que têm as folhas outoniças da amendoeira para os dedos sutis da viração. Assim, cada bocado de centeio que trituro nos dentes, sabe-me, antes, a um manjar esquisito e sem igual. E cada sorvo de água, fresco e cheio, vibra em meu paladar cordas ressoantes de secreta lascívia espiritual Tasso da Silveira in Poemas

VINHO

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É Puro o vinho deste odre, vindo de preclaros vinhedos. Apanha-o na taça de ouro, ou no tarro de barro, ou no caneco rústico: - em qualquer humilde vasilha ele te dará sempre o sabor transcendente que trouxe de suas altas origens. Tasso da Silveira in Poemas de Antes